OBAMA E OSAMA



                  José Miguel Wisnik


A morte de Osama Bin Laden me fez reler, nesses dias, o livro de Giorgio Agamben chamado “Homo sacer — O poder soberano e a vida nua I”. Já citei várias vezes o filósofo italiano, nesta coluna. Me interesso mais, ou talvez me identifique mais, com seus livros sobre poesia, linguagem, arte, como “Profanações” e “Ideia da prosa”, que contêm iluminações, embora às vezes me parece que saiam do foco. O que mais me impressionou foi “Estâncias — A palavra e o fantasma na cultura ocidental”, que revisita de maneira reveladora a história da melancolia, a mais antiga doença da alma. “Homo sacer”, que eu citei a propósito da tragédia de Realengo, trata da biopolítica, isto é, da sujeição do corpo, da matéria da vida e da morte, pelos poderes contemporâneos.

As duas figuras principais do livro são opostas e espelhadas: o soberano e o pária, que também podemos chamar de “banido” (Agamben é de uma erudição requintada, e descobre a figura do banido numa antiga expressão latina do direito romano, a do “homo sacer”). O poder soberano é aquele que se move dentro da lei, não como quem se submete ao seu ditame universal, mas como aquele que, ao ditá-la, se põe acima dela e fora dela, porque é ele que põe e dispõe, é ele que faz e desfaz a lei. O soberano é o elemento ordenador, no sentido forte de que dá as ordens supremas de vida e de morte, que faz valer a lei que não vale para ele e que, não valendo para ele, não é a lei. É a ordem e está fora da ordem. O pária é aquele que, no polo oposto, está em posição de ser morto sem punição para quem o mata, e sem direito a um rito religioso que sacralize a sua morte. Está fora da ordem jurídica e da ordem religiosa.

O soberano e o pária não deixam de participar de uma surda lógica que lhes é comum, e da qual eles são os pontos extremos: ambos estão fora da lei, seja porque um pode soberanamente excluir-se dela, seja porque o outro está completamente excluído dela. A tese de Agamben, que traz em si algo daquele aspecto cabuloso das generalizações de efeito, diz que vivemos cada vez mais num estado de exceção em que o soberano é aquele para o qual todos os outros são párias, matáveis sem recurso jurídico ou religioso, e o pária é aquele, sem recurso jurídico ou religioso, para o qual todos os outros são soberanos. Num mundo em que a lei revela o seu caráter enganoso de má ficção, somos todos, no limite, párias ou soberanos.

A ação cirúrgica que matou Osama Bin Laden é uma manobra de vingança e justiçamento, e não propriamente de Justiça, como Obama a chamou no ato complementar simbólico que se deu no espaço das torres gêmeas, com a presença de parentes das vítimas do 11 de Setembro. Impressiona que se use para ela todos os torneios jurídicos da lei, incluindo a tese da legítima defesa, para uma ação que se situa claramente acima, abaixo e fora da lei. Essa indistinção é a pura expressão do poder soberano nos termos de Agamben, e faz da lei uma “vigência sem significado”.

Vejo isso como teatro trágico em ato. Osama autor do atentado hediondo às pessoas que trabalhavam nas torres gêmeas usurpou por um momento a posição soberana como o raio vindo do céu que desmonta de maneira inimaginável os símbolos aparentemente intocáveis do poder soberano. O mesmo ato o torna o pária dos párias, o banido dos banidos, o matável dos matáveis, o caçado dos caçados. Dez anos depois, à maneira da carta roubada do conto de Edgar Allan Poe, que se esconde não numa caverna recôndita do Afeganistão mas no lugar menos visível de tão óbvio, num centro urbano e militar do Paquistão, Osama é localizado, morto, objeto de um rito pró-forma e riscado do mapa de maneira a não deixar traço.

O seu duplo chama-se Obama, eleito com o nome estranho que continha cifradamente os dois inimigos jurados dos Estados Unidos dos Bush — Hussein e Osama, hoje mortos. Imagino os monólogos interiores de Barack Hussein Obama durante a crise secreta que antecedeu a morte de Osama. Esse Orfeu Negro que chegou à presidência dos Estados Unidos, muito diferente dos presidentes americanos que, depois de Kennedy, nunca souberam andar e mascar chiclete ao mesmo tempo (como disse deles Richard Morse), que tentou desativar Guantánamo (cujas torturas foram base da operação que caçou Obama), sabe distinguir muito bem o que é a violência soberana e o que é o império da lei.

Que ele tenha aceito confundir as duas coisas como sendo a mesma é um índice gritante da regra que toma o mundo, e de que a sua posição tornava-se insustentável sem o ato de reentronização do poder soberano americano aos olhos mundiais, tendo-o como o protagonista a calar a boca da direita, unificando o país sob o signo da revanche vitoriosa. A ação, seus métodos e seu discurso, ao reaproximá-lo cenicamente dos que o atacam dentro dos Estados Unidos, colocou Obama e Osama, quase como uma alegoria, como o par indissolúvel da vida contemporânea, os gêmeos extremos nos quais se espelha a fragilidade inócua da lei.

A famigerada cena do gabinete de crise onde o alto comando americano assiste à execução no Paquistão em tempo real impressiona pelo fato de nos colocar dentro da foto, como um quadro de Velasquez em que não vemos a cena que eles veem, mas somos chamados a entrar nela, representados na imagem por alguém que, ao fundo, à direita, estica o pescoço para ver melhor o inominável, frente ao qual Hillary leva a mão à boca, enquanto o presidente ocupa uma posição periférica, e o trono é ocupado pelo militar medalhado.

FONTE: Jornal O Globo, 07/05/2011

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