UM DIA NA FAVELA DO ALEMÃO: O QUE A MÍDIA NÃO MOSTROU

Artigo retirado de: Revista Brasil


Diferente do dia-a-dia de uma favela, que sempre está lotada de gente, com crianças brincando pelas calçadas, alegria e música ao ar livre, trabalhadores e trabalhadoras voltanddo de seus trabalhos, e estudantes voltando de seus colégios, encontramos nas Favelas do Alemão, pouquíssimas ruas com movimentação. O Alemão é um conjunto de 13 favelas, com aproximadamente 400 mil moradores (segundo informações das associações de moradores), localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Na verdade, a movimentação que eu e meus amigos fotógrafos encontramos pelas ruas era a forte presença do Exército, da Polícia Civil e Militar. E a “ocupação” ou “invasão” estava desde a pista de entrada das favelas até as casas e lajes dos moradores.

 

No meio da favela o trator blindado do BOPE derrubava muros em frente a uma casa com uma bandeira branca hasteada. Bati na porta do morador, que me atendeu com uma olhar meio assustado e desconfiado. Perguntei para ele o que significava aquela bandeira. Ele respondeu “É paz moça. Quero dizer que sou de paz. É só isso?”, perguntou já mostrando que não queria ter o direito de “ficar na dele”.

Nas andanças pelas ruas, vielas, becos e naquelas subidas e descidas de ladeiras, o que víamos eram  diversas casas com um pequeno aviso na porta:

  

“Por favor, não invada a nossa casa, ela já foi revistada. Se quiser entrar, a chave está ao lado, na casa do vizinho”.  O mesmo aviso encontrei na região conhecida como “Zona do Medo”. Diversas casa traziam o recado: “Volto logo. Por favor não quebre mais a minha casa”. Ao lado da porta, na entrada, uma televisão de 26 polegas de LCD com a tela rachada – fiquei imaginando quantas prestações aquele morador pagou por aquele bem ou quantas ainda tenha que pagar. Essas situações descrevem mesmo em um simples papel, a verdade daqueles moradores, a verdade do sofrimento, da ação violenta da polícia, a invasão de casas que visitei com diversas estruturas quebradas: teto, parede, pia, descarga. Em algumas, houve até pichação. “Comando Azul”.  Outras sumiu tudo. Até a geladeira e o fogão foram levados, além de roupas e tênis.




As ruas, com pouquíssimas pessoas andando, e as portas fechadas também são exemplos de toda esta confusão que sobrevoa aquele conjunto de favelas. A mídia, que faz questão de enfatizar que está tudo em paz, nos mostrou o contrário, que o silêncio daquelas ruas não significava a tal paz. Numa das ladeiras que subimos, um morador parou a Kombi que estava dirigindo e gritou: “Quero que vocês tirem fotos, filme o que os policiais estão fazendo nas nossas casas. Eles estão invadindo, agredindo, roubando a gente. Isso eu quero ver sair no jornal, isso vocês não mostram. Isso é uma vergonha!”, disse indignado aquele senhor.

Em outra esquina,na favela Nova Brasília, uma moradora comenta: “Ali o a equipe da Record. Só entrevista gente da polícia. Quero ver fazer o que você faz dona. Vou te mostrar o que fizeram na minha casa. Não sobrou nada.  E quando eu gritei que o policial tstava roubando tudo só ouvi o barulho do fuzil batendo no chão e o xingamento: Velha Safada”.  Já em outra casa, enquanto eu desviava do esgoto que corria por debaixo de uma tábua, e entrava no quintal, a moradora me mostrou que a laje dela foi usada para ser ponto de observação da polícia”.


 


Em idas e vindas, ao invés de encontramos também crianças soltando pipas, famílias reunidas fazendo o seu churrasco na laje ou tomando aquele banho de mangueira, já que estávamos embaixo de um belo sol quente, o que encontrávamos ao olharmos para o alto daquelas lajes eram policiais fortemente armados, com coletes a prova de balas.

Em frente a uma das casas, que meus amigos pararam para fotografar o morro, era uma bela vista, depois de alguns minutos, descobrimos que aquela casa estava com policiais lá dentro, não sabíamos o que eles estavam fazendo lá, mas tinha também uma família ali. Depois de mais ou menos 20 minutos, chega uma senhora querendo entrar, mas a filha não deixa, pede para ela voltar. E neste mesmo instante, daquela pequena casa que parecia ter apenas um cômodo, saem quatro policiais, com fuzis e coletes a prova de balas.

Outro morador, que também não quis se identificar, disse que tem muito medo dos policiais. “Tenho medo dos policiais. Eles gritam, agridem a gente, invadem as nossas casas. Mas, se fizermos isso com eles, tudo vira desacato à autoridade. Por isso, tenho medo deles. Eles podem fazer o que quiserem com a gente. E para quem vamos denunciar se não confiamos em quem nos oprimiu por décadas”, falou.

Para Alan Brum Pinheiros, Coordenador Geral do Instituto Raízes em Movimento, que funciona do local há nove anos, e trabalha com a missão de promover o desenvolvimento humano, social e cultural do Alemão e demais comunidades por meio da participação de atores locais como protagonistas desses processos, tendo como foco o fortalecimento e ampliação do capital social dessas comunidades, é possível comparar a invasão da polícia em 2007 com a invasão de agora. “Em 2007 tivemos o auge da história de opressão na forma de abordagem de respeito da vida humana. Em 2007 foi mais brutal. A de 2010, a que estamos vivendo agora, foi feita a partir de outra expectativa, mas que não foi trabalhada com cuidado. Eles trabalharam com a ideia da inteligência, mas serviu e está servindo apenas para alguns pontos de onde a presença dos comandantes são maiores. Em outras partes das favelas, o desrespeito acontece. Eles não trabalharam com inteligência, por mais que fosse esse o objetivo”, disse. 

Segundo Alan, esta nova forma dos policiais entrarem nas favelas, não significa que é porque estão reconhecendo a favela com o olhar de que ali existem cidadãos, pessoas. “Existe a criminalização, a opressão, a falta de respeito com o povo. Exemplo disso, é que em uma das casas invadidas, três meninas que moram sozinhas, foram taxadas de putas, e todos os jovens homens que não tem trabalho formal, ou que estão desempregados, são taxados como suporte do tráfico. Afirmo que houve mudanças pontuais, mas não é uma mudança que deve ser aplaudida”, completou o coordenador.

 

Foi prometido que daqui a seis meses, todo o Conjunto de Favelas do Alemão, vai ter a presença da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), lembrando que no mesmo dia em que o Governador Sérgio Cabral foi reeleito, ele afirmou que as três maiores favelas do Rio seriam ocupadas pela UPP: a Rocinha, localizada na Zona Sul, o Conjunto de Favelas da Maré e o Conjunto de Favelas do Alemão, ambas localizadas na Zona Norte. A promessa já está sendo cumprida, mas o coordenador Alan, afirma que o nome da própria UPP é contraditório. “A polícia já deveria ser pacificadora. Não se faz nenhum trabalho nessas favelas para acabar com o tráfico. Na Bahia de Guanabara, não tem UPP, porque é lá que as armas e as drogas entram. O tráfico mesmo não foi abalado em nada”, conclui.




Mercado Livre S.A.


No mesmo dia em que o morro foi ocupado pelas forças armadas, a luz, a água e diversas outras coisas passaram a ser legalizadas. “Ele já trouxe alguns prejuízos para os moradores, invasão de casas, moradores roubados. Tínhamos a net gato, mesmo que ilegal, era mais acessível a gente pagar. Não ganhamos nem um salário mínimo. Pagávamos barato, 25 reais e agora temos que deixar de comer um pouco para poder pagar canal de assinatura que custa 50 reais porque a imagem da TV não pega direito aqui. Isso é uma exploração, veio a paz, mas junto com ela veio a exploração”, contou Diquinho, participante do Conselho Popular do Alemão e coordenador do Jornal “O Guerreiro”, que circula há um ano na favela.

Outro morador que pediu para não ser identificado também reclama. Para ele  é um absurdo a especulação de serviços que ocorre na comunidade. “Os serviço de assinatura de tv por assinatura chegou antes de qualquer serviço público. Pior, os vendedores do serviços sequer são moradores da comunidade. Acho um absurdo uma empresa vir aqui explorar um serviço e não se preocupar em gerar emprego e renda. Depois diz que pobre é ilegal. Nem emprego as empresas tem a inciativa de oferecer a comunidade. Como vamos pagar um serviço. Net aqui não é opção. É necessidade. Ninguém vê tv direito se não tiver o serviço", completa.




De acordo com Alan, quando a UPP chegar, ela trará com ela a militarização do território e, além disso, a ação mercadológica também. “O Estado não procura os pequenos negócios dentro dessas favelas ocupadas e investe neles. Ele não produz uma economia solidária para o local, o que ajudaria muitos comerciantes. Ocorre o contrário, o deslocamento para outros territórios, outras empresas passam a atuar nestes espaços. E se eles não procurarem a alternativa da economia solidária, tudo, a pobreza vai continuar da forma que está e nada será resolvido. É preciso trabalhar com a ideia do curto, médio e longo prazo. Além disso, há os limites impostos nestes locais que tem UPP, de eventos, de músicas etc”, afirmou Alan.

“Mandando a Real”

As incertezas sobre as ocupações são grandes. Moradores vivem anos de opressão e não querem mais sofrer com qualquer tipo de criminalização da pobreza. Não sabem a quem denunciar tantas violações que estão sofrendo, não confiam em quem os oprime todos os dias. A mídia espetaculariza os fatos, dando a ideia de que chegou a paz, mas não comentou sobre os abusos que os moradores sofreram e estão sofrendo. Ou quando comenta, a informação sempre ganha a voz de uma autoridade pública dizendo que tudo será investigado ou ainda, que o morador precisa entender e cooperar. Não questiona a entrada da polícia dentro das casas desses moradores, não questiona se a UPP resolve o problema do tráfico, já que não é dentro da favela que os financiadores estão. Não questiona qual é afinal, a política de segurança pública do Rio de Janeiro.




Além disso, é óbvio que as crianças agradecem a distribuição de 10.500 brinquedos pela Secretária de Segurança Pública. Mas a festa de Natal no Alemão para as crianças sempre aconteceram. Só que antes quem fazia era o tráfico. É evidente que é melhor o tráfico não existe em qualquer lugar.  Mas é incontestável que o marketing do governo através da política de segurança pública é usado de forma avassaladora. Afinal, se o tráfico também fazia festa para a comunidade (distribuindo brinquedos) e agora foi o governo que fez a tradicional festa, o que mudou de fato no Alemão? O que existe é paz ou mudança de controle de poder?  Da mesma forma que traficantes usavam certas ações para conquistar a população (como a realização de festas no Dia das crianças, Dia das Mães e no Natal) a polícia carioca também não fez? Vários podem dizer que a troca do chamado poder paralelo pelo poder da polícia esta absolutamente certo. Ok, concordo. O Estado tem o dever de agir em toda a cidade e em seus territórios. Mas é preciso fiscalizar, observar, acompanhar e averiguar e cobrar uma postura adequada de fato. Não apenas uma declaração para dizer que faz alguma coisa ou poderá vir a fazer.
Para mim, as coisas ainda estão estranhas. Tudo nebuloso demais. Midiático demais. E os pedidos coma  lista de mortos não é emitida pela Secretaria de Segurança Pública. Passei dezembro inteiro tentando obter essa informação. Entro no ano de 2011 com o mesmo objetivo. Eu (repórter) , os movimentos sociais e de direitos humanos e a imprensa paulista.

No dia 31 de dezembro, conversei com uma fonte do Alemão. O morador contou que cerca de 70 pessoas, no mínimo, foram mortas na mata da Serra da Misericórdia. Os corpos foram deixados para trás. A maioria das famílias que tentaram buscar foram impedidas. Os porcos comeram diversos corpos. Em matéria publicada na Folha de São Paulo, em 5 de dezembro pelo menos um caso foi registrado pelos jornalistas. Leia em aqui.
Movimentos Sociais contabilizam 77 pessoas mortas. Em carta pública emitida em 21 de dezembro, a organização Justiça Global afirma que “espera que o levantamento em cerca de 40 casas de moradores do Complexo do Alemão leve a uma investigação independente das mortes que ocorreram no local”. O documento foi entregue no dia 21/12/2010, à ONU (Organização das Nações Unidos) e à OEA (Organização dos Estados Americanos). Segundo a diretora-adjunta da entidade, Sandra Carvalho, o motivo é pressionar para que haja uma investigação independente dos casos de morte durante as operações de segurança no Rio de Janeiro.

O passado é ontem

Em 2007, após uma operação da polícia no Alemão, houve um manifesto nos mesmos moldes. Uma notícia crime enviada ao Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro pela Comissão de Direitos Humanos da OAB traz mais de 20 denúncias de saques, roubos e destruição a casas realizada por policiais. Além da denúncia de execução sumária de pelo menos 15 das 19 vítimas mortas no dia 27 de junho de 2007.

O assessor da Justiça Global, Gustavo Mehl, afirma que a pressão garantiu uma perícia que comprovou que alguns moradores foram executados. “O que nós questionamos é a falta de transparência, não há um número de mortos nem uma lista parcial de nomes”, critica Sandra. Somando dados divulgados no decorrer das operações, a entidade chegou ao número de 77 mortos entre os dias 21 e 28 de novembro, ou seja, desde o início da resposta policial aos ataques de criminosos. Além do Complexo do Alemão, houve ações na vizinha favela da Vila Cruzeiro.



Denúncias

Há registros de torturas psicológicas e físicas realizadas por policiais. Um  trabalhador chegava na comunidade após uma noite de trabalho e foi impedido de entrar na favela. Se identificou. Mostrou crachá. Mas ouviu que “ninguém cai nessa conversa não!”. Foi colocado em um carro. Com venda nos olhos e um fuzil na garganta. Os policiais o torturaram por 12 horas. “Mata logo esse porra. Destroça esse pescoço já que ele não quer cantar”. O morador torturado só foi liberado à noite.
Entre as denúncias de moradores que foram levadas aos órgãos internacionais, a principal é a chamada “caça ao tesouro”. Segundo as famílias entrevistadas, membros de diversos batalhões diferentes se revezavam para invadir casas e levar dinheiro e objetos de valor.
No início de dezembro, o Secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame, respondeu a acusações de moradores, dizendo que se tratavam de ações de “maus policiais”, mas segundo os relatos, tratavam-se de ações de vários grupos de batalhões diferentes.
Fotos: Tatiana Lima
Charges e fotos identificadas: Carlos Latuff

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