100 ANOS DA REVOLTA DA CHIBATA





Texto de Zantonc

Há cem anos atrás, exatamente no dia 22 de novembro de 1910, os marinheiros brasileiros revoltaram-se contra as péssimas condições oferecidas pela Marinha. Não possuíam direitos de qualquer espécie, eram engajados por quinze anos e submetidos a humilhantes castigos corporais, dos quais as chibatadas correspondiam à face mais hedionda.

A oficialidade da Marinha era originária da classe dominante. Fazia-se notar pela presença em constantes festas, pelo parasitismo e pelo caráter mais conservador e reacionário de suas ideias, alinhando-se ao lado dos interesses monarquistas desalojados do poder. Os marinheiros eram recrutados a laço, já que pouquíssimos indivíduos se aventuravam a ingressar na esquadra republicana, cuja mentalidade em nada diferia da monárquica. Por isso os marujos eram aprisionados, sequestrados e encaminhados pela polícia às autoridades navais, constituindo-se em um grupo majoritariamente egresso do lumpenproletariado.  



A luta comandada por João Cândido, o Almirante Negro, não foi propriamente uma luta revolucionária, não se colocava para eles a questão do poder, nem se constituíram como o braço armado de um movimento político. A única proposição era conquistar a dignidade, abolir a chibata, alcançar a cidadania.

O estopim para a revolta foi o castigo imposto ao marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes: 250 chibatadas diante de toda a tripulação do Minas Gerais. Castigo que sequer foi interrompido após o desmaio da vítima.

Seguramente também deve ter contribuído para a disposição dos marinheiros a permanência de alguns (entre eles João Cândido) em New Castle, na Inglaterra, onde puderam observar a profunda diferença no tratamento concedido aos nautas ingleses. Além disso, não é improvável que tomassem conhecimento da rebelião do encouraçado Potemkin e sofressem alguma influência desse movimento.

Acuado pela extraordinária capacidade dos nautas, de posse de uma das mais poderosas esquadras do mundo* (quem te viu e quem te vê, hoje a nossa esquadra é simplesmente ridícula), o governo do medíocre Marechal Hermes (na verdade, presidente de fachada, pois quem mandava mesmo era o senador Pinheiro Machado) escreveu uma das páginas mais vergonhosas da história brasileira: concedeu uma anistia a João Cândido e a todos os marinheiros, apenas para atraí-los para a prisão, para a brutalidade e mesmo para a morte.


Apesar de anistiado, João Cândido foi trancafiado com dezoito insurgentes na ilha das Cobras. Dezesseis marinheiros morreram vitimados pela cal jogada com água dentro da prisão  subterrânea pelos carrascos. Só escaparam o Almirante Negro e um marujo conhecido como “Pau da Lira”, cujo nome era João Avelino Lira.

Não satisfeitas com o afastamento do líder da revolta, as autoridades da Marinha providenciaram a sua internação como doente mental no Hospício Nacional.

Julgado por um Conselho Militar, João Cândido foi absolvido e solto no final de dezembro de 1912. 



No cargueiro Satélite, foram fuzilados diversos marinheiros anistiados, alguns com os pés e mãos algemados. 293 homens e 45 mulheres tinham sido amontoados no navio para, ao final da viagem macabra, serem entregues como escravos aos seringalistas da Amazônia. Observe-se que os prisioneiros não eram todos marinheiros, muitos foram embarcados pela polícia, como as mulheres acusadas de prostituição.

Uma segunda sublevação, a do Batalhão Naval, sediado na ilha das Cobras, foi debelada mediante um verdadeiro massacre, apesar da rendição incondicional dos insurretos. 

A perseguição a João Cândido estendeu-se também a todos aqueles que reconheceram o seu valor e a justeza da luta dos marinheiros. Por isso Aparício Torelly, o popular Barão de Itararé, foi sequestrado e surrado por oficiais da Marinha depois de escrever duas reportagens sobre João Cândido, na Folha do Povo. Depois o humorista mandou escrever na porta da redação:    “- Entre sem bater!...” Posteriormente, Edmar Morel, autor do livro A Revolta da Chibata, sem o qual eu não teria escrito este texto, foi cassado e perseguido pela ditadura civil-militar que tomou o poder em 1964. Aliás, a mesma ditadura que censurou a letra da merecidamente famosa canção de João Bosco e Aldir Blanc - “O mestre sala dos mares”.

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Como salienta Marco Morel na apresentação da 5ª ed. comemorativa do centenário da Revolta da Chibata: 

“Relembrar hoje João Cândido e a rebelião de 2.300 marinheiros, da qual ele se tornou símbolo, significa compreender que seus gestos e palavras trazem à tona problemas ainda inquietantes para a sociedade brasileira como o racismo, a desigualdade social, a violência cotidiana do Estado sobre as camadas pobres da população e a democratização das Forças Armadas – sem esquecer do mito de que existe uma tradição ordeira, pacífica e conciliadora na história do Brasil.”


* Em 1919 o Brasil era a terceira potência naval do mundo com a sua famosa “Esquadra Branca”, constituída pelos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, cruzadores Rio Grande do Sul, Bahia, couraçado Deodoro, destróieres Amazonas, Pará, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Santa Catarina, Mato Grosso e outras belonaves, num total de 24, inclusive o Tamandaré, Benjamin Constant, Floriano, Tiradentes, República, Barroso, 1º de Março.

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