FRAUDE DO ENEM






Por trás da anulação do ENEM surgem as sombras de um processo de montagem e modelamento de um sistema educacional a serviço de interesses inapropriados ao povo brasileiro, tudo mascarado por uma lógica pretensamente democrática e modernizadora do acesso às universidades. Lógica falaciosa, pois não esconde a permanência de um filtro pelo qual as classes populares são barradas.

O abandono da rede pública a interesses político-eleitoreiros, a precariedade física de construções escolares incompletas (sem quadras esportivas, laboratórios e bibliotecas), a manutenção do magistério em um estado permanente de miserabilidade, a falta de política pública educacional que não esteja atrelada a índices externos asseguradores de empréstimos e negociatas, a subordinação do movimento estudantil ao governo, silenciando-o e investindo na sua atomização (processo exitoso no movimento sindical, no qual levou ao desaparecimento de centrais sindicais, transformadas em seções sindicais de partidos políticos burgueses), a criminalização de todas as autênticas manifestações oposicionistas, o privilégio ao gerenciamento bancário da educação, e muito mais, enlaçam-se na produção de um caldo de cultura do qual emergem as origens e as finalidades do ENE, que não podem esconder sua natureza ideológica, seu modernismo senhorial de mando e adestramento e a tentativa, sob alegações aparentemente zelosas pela democratização do acesso ao ensino superior, de esvaziamento e isolamento das universidades públicas com as sistemáticas e levianas afirmações negativas feitas ao trabalho e desempenho das Ifes.

Infelizmente, a reação ao episódio de vazamento do gabarito da prova do ENEM fica limitada apenas a um repúdio ético ao ato ilícito. É preciso aprofundar a nossa reflexão, transformando o justo repúdio a um ato desonesto em um movimento contra aquilo que vem à tona na fraude - uma fraude muito mais ampla: a mercantilização do ensino público e a sua abertura a fundações, ongs, OSs e instituições estrangeiras.


Como modesta contribuição, transcrevo artigo do prof. Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação da UFRJ, escrito sob um ângulo que não se encontra em nossos meios de comunicação. O texto foi extraído do Jornal da ADUFRJ, n° 635, de 6/10/2009. O endereço na rede é: htpp://www.adufrj.org.br/


Zantonc




ENEM: o que é comodificado é mercadoria



Roberto Leher*

O ramo de negócios educacionais tem na avaliação estandardizada um dos seus principais filões. Não foi por outro motivo que, quando as corporações educacionais dos países hegemônicos reivindicaram na OMC a liberalização da educação, incluíram a abertura dos editais de avaliação padronizada à concorrência internacional[1].

A avaliação do ensino médio por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) está inscrita na mercantilização da esfera educativa e as recentes fraudes no Exame, denunciadas pelo O Estado de São Paulo e, com mais detalhes, por outros jornais, estão intimamente associadas a essa comodificação: a avaliação foi deslocada da esfera educativa para a do dinheiro. E esse movimento tem consequências.

Embora os Estados não possam tolerar determinadas ilegalidades, como é o caso óbvio da venda de provas (não resta dúvida de que para o MEC isso foi um desastre), a busca de lucros com a mercadoria avaliação inevitavelmente deixa brechas, pois, no circuito mercantil, as fronteiras entre o lícito e o ilícito são muito porosas e fluidas.

O serviço terceirizado de avaliação para ingresso na universidade (ENEM) tem origem nas empresas nutridas pela política de vestibulares da ditadura empresarial-militar, como é o caso, no Rio de Janeiro, da Fundação Cesgranrio. Como parte da concorrência pelo lucro, fundações de direito privado nascidas nas universidades públicas entraram no negócio. Os recentes acontecimentos envolvendo as fundações privadas na UnB, UFSP e pelo alentado relatório do TCU[2] atestam que, nelas, os negócios ilícitos não são uma rara excepcionalidade.

Cabe indagar: qual a legitimidade desses consórcios e empresas que se engalfinham por dinheiro para avaliar o conjunto da juventude que concluiu o ensino médio e que almejam prosseguir seus estudos? Nesse ambiente mercantil, muito provavelmente surgirão outros problemas no futuro, colocando o caráter público das universidades em jogo. São dezenas de milhões de Reais, concorrências duras, alianças e cisões entre grupos que operam essa capitalizada máquina de venda de serviços de avaliação.

O que mais surpreendente nas contradições do processo de comodificação da avaliação é que as próprias instituições públicas assimilaram que a avaliação é um serviço a ser subcontratado. A autonomia didático-científica da universidade, assegurada pela Constituição, é tornada letra morta. É como se a experiência de luta das universidades públicas contra o vestibular unificado não tivesse ensinado que a avaliação é parte indissociável da autonomia universitária.

Não é fato que o vestibular das públicas é estritamente conteudista e o ENEM é uma prova que privilegia o “raciocínio”. Há muitos anos a UFRJ vem aperfeiçoando seus exames, combinando a imprescindível aferição do conhecimento científico, tecnológico, artístico e cultural com a apropriação da linguagem e com a capacidade operatória de aplicar o conhecimento na análise de problemas. A rigor, afirmar que na ciência, na arte e na cultura é possível raciocinar sem conceitos é um absurdo epistemológico.

O vestibular é um instrumento de seleção que somente tem sentido porque o direito à educação não é assegurado pelo Estado. O vestibular atual sequer assegura as vagas daqueles estudantes que foram aprovados nas provas (gerando os chamados excedentes que, em 1968, impulsionaram a rebeldia estudantil e que o vestibular unificado veio fazer desaparecer!). Contudo, a seleção feita pelas próprias universidades, em âmbito estadual, tem o mérito de poder ampliar as interações das escolas de ensino básico com a universidade em cada estado, buscando maior congruência entre a universidade e as escolas, por meio de desejáveis articulações educacionais com a rede pública da educação básica.

As ditas provas de “raciocínio” do ENEM, a pretexto da democratização, vêm promovendo um rebaixamento da agenda de estudos que terá conseqüências muito negativas para a educação básica. É uma quimera afirmar que um exame rebaixado e nacional abre a universidade pública aos setores populares. Como o exame é classificatório, não importa se o último ingressante teve nota 5, 6 ou 9. Este é um sistema que beneficia o mercado privado de educação: os estudantes que não lograram serem classificados nas públicas não terão outra alternativa que a de buscar uma instituição privada. E o MEC, reconhecendo a dita eficiência privada no fornecimento da mercadoria educação, prontamente se disponibiliza a repassar recursos públicos para incentivar as privadas a atender ao crescimento da dem anda.

Ao contrário da publicidade oficial, o ENEM privilegia os estudantes de maior renda. Um estudante paulista que, apesar de elevada nota, não ingressou na faculdade de medicina da USP (dada a concorrência), poderá, com os seus pontos, frequentar o mesmo curso em uma universidade pública em outro estado, desde que tenha recursos. A mobilidade estudantil pretendida somente favorece os que possuem renda para se deslocar, uma vez que as universidades não dispõem de moradias estudantis e políticas de assistência estudantil compatível com as necessidades.

O atual desmonte do ENEM pode ensejar um debate mais amplo e profundo sobre as formas de ingresso na universidade que permita a superação progressiva do vestibular. Experiências de ingresso a partir de políticas públicas de educação nas escolas públicas, considerando a situação econômica dos estudantes, podem ser um viés fecundo, um caminho para que a universalização do direito à educação seja de fato uma universalização em que caibam todos os rostos.

*Professor da Faculdade de Educação da UFRJ

[1] No Documento S⁄CSS⁄W⁄23, de 18 de dezembro de 2000, dirigido ao Conselho de Comércio de Serviços da OMC, os EUA apresentam uma proposta relativa aos serviços de ensino superior, ensino de adultos e de capacitação com o objetivo de “liberalizar a comercialização deste importante setor da economia mundial removendo obstáculos que se opõem à transmissão desses serviços além da fronteiras nacionais por meios eletrônicos ou materiais ou o estabelecimento e exploração de instalações para proporcionar serviços a estudantes em seu país ou no estrangeiro”.

[2] . Tribunal de Contas da União, Acórdão 2731/ 2008.

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